Cloroquina: um medicamento com uma origem acidental
Medicamento utilizado para o tratamento da malária é um dentre vários outros sintetizados desde os anos 1920. Pesquisas envolveram cientistas marcados pelo pensamento colonialista, experimentos em pacientes com distúrbios psiquiátricos em hospícios, drogas com efeitos colaterais ignorados e rivalidades entre norte-americanos e nazistas.
A cloroquina, bem como uma de suas variantes, a hidroxicloroquina, está no centro de um amplo e atual debate sobre ciência e saúde pública. Esses dois medicamentes, tradicionalmente utilizados no combate à malária, foram empregados este ano no tratamento de pacientes de Covid-19 em estado grave, mostrando-se aparentemente eficazes em alguns poucos casos. Não obstante representantes da classe médica advertirem para os riscos envolvidos no seu uso e para a falta de resultados conclusivos acerca da sua eficácia contra o novo vírus, a expectativa em torno do medicamento cresceu após ampla divulgação da imprensa e politizou-se após o tratamento ser mencionado pelo presidente norte-americano, Donald Trump, e pelo brasileiro, Jair Bolsonaro.
Recentemente, a polêmica ganhou mais um capítulo: dias após o Ministério da Saúde do Brasil publicar uma portaria autorizando médicos de todo o país a utilizarem a cloroquina para casos leves da doença, a revista acadêmica The Lancet, uma das mais prestigiadas na área média,publicou um robusto estudo que levou em conta o acompanhamento de 96 mil pacientes de Covid-19 submetidos à hidroxicloroquina. Apesar das expectativas com o medicamento, os resultados demonstraram que a cloroquina não só é ineficaz na luta contra o vírus, como aumenta substancialmente o risco de morte e arritmias cardíacas.
Comprimidos e pílulas ilustram a cloroquina e outos medicamentos da mesma família.
Até se chegar a cloroquina, durante a Segunda Guerra Mundial, muitos outros medicamentos foram produzidos em laboratório. Foto: Unplash.
A polêmica em torno da cloroquina, contudo, não é recente. Originalmente desenvolvida para tratar da malária, surgiu do esforço sistemático da indústria químico-farmacêutica em encontrar um substituto sintético para a quinina, conhecida desde a colonização espanhola das Américas e por séculos utilizada como principal tratamento contra os acessos febris que caracterizam a doença. Desta forma, a origem da cloroquina está associada à longa história de enfrentamento da malária, enfrentamento este que envolveu cientistas europeus marcados pelo pensamento colonialista, experimentos em pacientes com distúrbios psiquiátricos em hospícios, divulgação de drogas com efeitos colaterais ignorados e rivalidades entre norte-americanos e nazistas no século XX. O objetivo deste artigo é contar esta acidentada história que resultou na cloroquina durante a Segunda Guerra.
A quinina no combate à malária
A longa história de tratamento da malária no Ocidente inicia-se com a quinina, uma substância extraída da casca da Chinchona, planta bastante comum na América do Sul. A quinina é tradicionalmente utilizada na prevenção e tratamento da malária desde o século XVII, quando espanhóis observaram, no Peru, que o uso costumeiro da Chinchona pelas populações locais mostrava-se efetivo no combate à doença. A planta foi levada então para a Europa e lá a quinina se difundiu e se generalizou no tratamento das febres periódicas que caracterizam a malária, também conhecida como impaludismo, paludismo ou febres palustres.
O princípio ativo da quinina foi isolado pela primeira vez pelos franceses em 1820, e isso viabilizou a sua manufatura e administração em pílulas. Em seguida, a eficácia no controle das febres generalizou a utilização médica da quinina, que, no entanto, apresentava vários inconvenientes, como o sabor desagradável e efeitos colaterais: alterações visuais, zumbidos no ouvido, distúrbios gastrintestinais e icterícia. Além disso, começou-se a observar falhas da quinina no tratamento de reincidências da malária e casos em que o parasita persistia no sangue dos pacientes, mesmo após administração de altas doses da droga. Havia também, no plano comercial, uma série de entraves ao uso da substância, já que os holandeses praticamente monopolizavam as plantações da chinchona em Java, na Indonésia, e detinham o controle da circulação e da comercialização da quinina por meio de um poderoso cartel. Deste modo, foi preciso encontrar uma alternativa à substância.
Em busca de alternativas
O desenvolvimento dos corantes sintéticos pela indústria química alemã e o papel desses compostos na coloração de células, bem como no combate a alguns microrganismos, fizeram com que se buscasse entre eles algum componente efetivo contra o parasita da malária. Em 1890, o médico alemão Paul Ehrlich propôs o uso do azul de metileno para esta finalidade. Considerado um dos pais fundadores da quimioterapia e da imunologia, Ehrlich tornou-se célebre por defender que da mesma forma que cada doença teria seu causador específico (ideia-força da bacteriologia), teria igualmente um medicamento químico particular desenvolvido contra este agente, baseando-se no princípio de que os corantes aderiam a porções específicas das células e tecidos. Contudo, apesar dos bons resultados do azul de metileno e de ter ele se tornado a base dos estudos de pesquisadores interessados em encontrar um sucessor da quinina, sua alta toxicidade não lhe permitiu ser usado no controle da malária.
A busca por um medicamento que pudesse substituir a quinina acentuou-se com a Primeira Guerra, quando as tropas alemães enfrentaram sérias epidemias de malária no front. Os alemães, além disso, foram privados de sua principal fonte de matéria-prima, com a tomada de suas possessões coloniais na África. Foi neste momento que a empresa farmacêutica alemã Bayer deu início a um esforço sistemático de encontrar um medicamento contra a malária, beneficiando-se da robusta tradição em estudos químicos, forjada a partir da estreita aliança com as universidades germânicas e institutos científicos.
É importante sublinhar que a partir deste momento, tanto a Bayer quanto outros laboratórios, vão passar a utilizar apenas partes da quinina, que vão servir como “modelos” para a fabricação de novos compostos, totalmente sintéticos. De certa forma, é como se os pesquisadores “montassem” e “desmontassem” partes das moléculas e testassem o seu potencial terapêutico e toxicidade. Os medicamentos que vão surgir dessas experiências não eram à base de quinina, no sentido de derivarem diretamente dela, mas apenas usavam essas partes cuidadosamente isoladas em laboratório. Desse tipo de pesquisa vão surgir vários, milhares de fórmulas, das quais, como veremos, a plasmoquina, a atebrina, a sontoquina e a cloroquina se tornaram efetivamente medicamentos comercializados.
Na Bayer, o trabalhou envolveu tanto mudanças seriadas da quinina quanto mudanças seriadas na estrutura química do azul de metileno. Os vários compostos encontrados eram testados em grande escala, em pássaros, e as modificações químicas eram associadas à atividade biológica nos animais. Os testes em humanos esbarravam não só em entraves éticos, que já existiam à época, mas também na disponibilidade de pacientes – nesse período a malária era pouco comum nos territórios europeus, de onde havia recuado nos séculos anteriores devido a melhoras nas condições sociais e ao crescimento urbano (a malária é, predominantemente, uma doença rural).
A possibilidade de contornar essas restrições e testar os novos compostos em humanos surgiu com novo procedimento médico percebido como uma grande revolução na época: a malarioterapia, desenvolvida pelo psiquiatra austríaco Wagner von Jauregg no tratamento da paralisia geral progressiva, quadro psiquiátrico severo associado à sífilis, comum nos hospícios, mas que não apresentava tratamento, sendo por isso, fatal. A malarioterapia (ou, mais genericamente, “febre-terapia”) consistia em induzir febres nesses pacientes através da inoculação de parasitas da malária, o que se acreditava curar a paralisia progressiva/ neurossífilis ou melhorar os sintomas. Jauregg havia obtido bons resultados nesse sentido, depois de ter tido acesso a parasitas da malária provenientes de soldados infectados que retornaram do teatro da Primeira Guerra Mundial. Ele divulgou seus achados à comunidade médica em 1917.
A malarioterapia passou a ser amplamente utilizada na Europa, Estados Unidos, América Latina e Austrália entre os anos 1920 e 1940. Valeu a Jauregg o Prêmio Nobel de Medicina, em 1927, e abriu as portas das instituições psiquiátricas para os testes dos compostos antimaláricos desenvolvidos pela Bayer. Inicialmente, propunha-se que apenas os indivíduos acometidos pela chamada paralisia progressiva ou “tabes”, vítimas da infecção pela sífilis, fossem alvos da terapêutica. Além disso, Jauregg propunha que inoculassem somente os parasitas da forma mais benigna da malária, e não os causadores da temida “malária trópica”, responsável pelas manifestações letais da doença. No entanto, à medida em que estes experimentos se estenderam no decorrer dos anos 1930, passaram a abandonar esses protocolos, infectando com malária pacientes com outras doenças e utilizando o agente causador da forma fatal da doença, no afã de encontrar um medicamento sintético que se mostrasse eficiente.
Os primeiros antimaláricos sintéticos
Com o tempo, os pesquisadores passaram a testar as novas fórmulas em esquizofrênicos e em pacientes acometidos de outros distúrbios mentais. Em 1925, a Bayer divulgou ter encontrado o primeiro antimalárico sintético bem-sucedido, a plasmoquina, amplamente testada nos pacientes psiquiátricos, como também em pessoas que viviam em regiões malarígenas da Itália e Espanha e em trabalhadores da corporação estadunidense United Fruit Company, na América Central. O medicamento surgiu de uma série de compostos, as aminoquinolinas, que combinavam partes do azul de metileno de Ehrlich com a porção central da quinina. Apesar de eliminar algumas formas do parasita, ele apresentava efeitos colaterais severos. O mais marcante deles era o comprometimento da oxigenação sanguínea, a ponto de os lábios do paciente ficarem azulados (cianose). Isto não impediu, entretanto, que subsidiárias da Bayer em todo o mundo comercializassem o medicamento, divulgado em grande campanha de propaganda, apesar dos vários relatos na imprensa médica e leiga que acusavam tais efeitos. A pesquisa seriada de novos compostos e os testes em pacientes seguiu adiante, com variações feitas nos arranjos das feitas nos arranjos do conjunto de moléculas, das quais resultaram mais de 12 mil fórmulas.
Em 1930, a Bayer desenvolveu mais uma nova droga, a atebrina. Ela era mais eficiente que a plasmoquina no combate aos parasitas, igualmente experimentada em internos dos hospícios e igualmente tóxica, apresentando efeitos como alucinações, gastrite e psicose. O comprometimento das funções orgânicas pela droga evidenciava-se com o amarelecimento do corpo, consequência dos distúrbios hepáticos que ela provocava.
Assim como a plasmoquina, a atebrina foi internacionalmente divulgada e distribuída pela Bayer a partir de 1932 como a grande promessa no tratamento da malária, ignorando as evidências que se acumulavam sobre os seus sérios efeitos colaterais, também divulgados nas revistas médicas e relatórios. Em muitos casos, recomendava-se o tratamento combinado das duas drogas. A atebrina foi testada nos territórios coloniais e em pacientes na Romênia. O Comitê de Malária da Liga das Nações endossou a atebrina como tratamento alternativo à quinina, assim como a Fundação Rockfeller, que coordenou testes no Brasil aplicando doses muito superiores às habituais. Quando as evidências dos problemas acarretados pelo medicamento se avultaram, a Liga das Nações desaconselhou seu uso.
As vendas massivas dos antimaláricos robusteceram ainda mais o poder econômico da Bayer, que desde 1925 integrava o poderoso conglomerado químico-farmacêutico, o chamado “IG-Farben” que reunia, além da Bayer, a Hoechst, a BASF, AGFA, Griesheim e Weiler Ter Meer, as mais importantes indústrias alemãs no ramo. Atraídas pelo nacionalismo conservador e pela promessa de regeneração econômica e política alemã propagados pelo nazismo, as lideranças da IG-Farben injetaram grandes somas de dinheiro no Partido, antes mesmo de Hitler chegar ao poder. Depois de 1933, estabeleceu-se uma ligação orgânica entre o conglomerado e o Partido e o Estado nazistas, com participação ativa nos esforços de preparação de guerra e, uma vez invadida a Polônia e deflagrado o conflito, na dinâmica do Holocausto.
A busca de um antimalárico eficiente teve continuidade nos laboratórios da Bayer, tornando-se ainda mais premente com a aproximação da Segunda Guerra Mundial e com forte suporte do governo nazista, que considerava o empreendimento militarmente relevante.
Novos componentes foram desenvolvidos e testados, não apenas nas instituições psiquiátricas, mas também entre os internos dos campos de concentração, utilizados como cobaias, nas quais a observância de restrições éticas foi ainda mais reduzida, para não dizer completamente ausente. Os estudiosos realizavam modificações estruturais nos antimaláricos conhecidos, sobretudo na plasmoquina, atebrina e quinina, interessados em encontrar uma fórmula eficaz contra todas as formas do parasita e com menor toxicidade.
Em 1939, a Bayer finalmente patenteou dois novos compostos: a resochina e a sontoquina, ambos resultantes dessas mudanças seriadas nas moléculas conhecidas e cuja eficácia e toxicidade eram testadas em modelos animais e humanos. A resochina, na realidade, havia sido desenvolvida em 1934 pelo químico da Bayer Hans Andersag (1902-1955). Sua ativa ação antiparasitária fez com que fosse testada no ano seguinte em uma clínica psiquiátrica em Düsseldorf. Mas a alta toxicidade fez com que a busca continuasse, até que se chegou a um análogo menos tóxico, a sontoquina, que mostrou-se bem mais promissor, testado em Düsseldorf e pelos pesquisadores do Instituto de Doenças Marítimas e Tropicais de Hamburgo em experimentos que envolveram mais de mil pacientes psiquiátricos.
Os pesquisadores de Hamburgo também experimentaram a sontoquina em soldados alemães, em populações nos Camarões e em pessoas que regressavam da região do lago Tanganika e de Dakar. Foi disponibilizada ainda aos médicos que atuavam em pesquisas sobre malária nos campos de concentração, como Claus Schilling, que realizava em Dachau sinistros experimentos seriados de imunização com plasmódio, os quais valeram sua condenação no Tribunal de Nuremberg. O chefe das SS, Heinrich Himmler, era favorável que os experimentos privilegiassem os prisioneiros dos campos ao invés de animais de laboratório.
Em 1940, a Bayer enviou uma amostra das novas drogas aos Estados Unidos, para a Winthrop Chemical Company, que operava juridicamente como uma firma norte-americana, mas fabricava produtos da Bayer, detinha seus direitos comerciais e industriais e tinha ligações administrativas estreitas com a matriz alemã. Os laços entre alemães e norte-americanos antes dos últimos entrarem na Guerra eram bem mais estreitos do que faz supor a ruptura operada pelo conflito. O governo norte-americano iniciava, então, um amplo programa de pesquisas sobre a malária, sob a chancela do Escritório de Pesquisa Científica e Desenvolvimento, dedicado principalmente a encontrar um medicamento que pudesse proteger as tropas que fossem lutar em regiões malarígenas e tratar eficientemente os acometidos.
O grupo reuniu os principais nomes da pesquisa química e biológica estadunidense da época, e passou a desenvolver compostos, testados em pacientes de hospitais psiquiátricos, presidiários e em estudantes de medicina. Seus pesquisadores partiram dos antimaláricos já existentes, como atebrina e plasmoquina, mas esbarraram em questões legais que garantiam à Winthrop as patentes dos derivados. Ao total foram testadas mais de sete mil fórmulas, mas não se chegou a uma droga que reunisse satisfatoriamente eficácia e pouca toxicidade.
O ataque a Pearl Harbor em 1941, com a consequente entrada dos Estados Unidos na guerra, e a tomada das plantações de quinina pelos japoneses, tornaram premente a descoberta de uma nova droga, sobretudo porque os enfrentamentos no Pacífico abrangiam zonas acometidas pela malária. Enquanto isso, alemães e franceses testavam, no norte da África, os potenciais profilático e terapêutico da resochina e da sontoquina. Um médico francês nesta época realizou experimentos em vilas no interior da Tunísia, onde verificou a excelente ação malarígena da sontoquina, cuja composição ignorava. A França já havia sido invadida pelo exército de Hitler e era comandada pelo governo de Vichy.
Quando os Aliados desembarcaram no Norte da África, esse mesmo médico francês fez chegar até as lideranças do exército dos EUA o composto, com os promissores dados de seus testes clínicos e informações da procedência. A amostra foi remetida para Washington e testada pelo comitê de pesquisas do exército, com enorme interesse, já que era reconhecida a vanguarda da indústria químico-farmacêutica alemã no desenvolvimento dos antipalúdicos. No teatro de guerra, o exército norte-americano permanecia utilizando a atebrina por ser a única opção disponível, com resultados desastrosos, pois desconheciam as dosagens ideais para amenizar os efeitos colaterais.
Os aliados perceberam que o composto remetido pelo francês era o mesmo recebido pela Winthrop em 1940, o que colocou o governo norte-americano em um impasse, pois a patente pertencia à firma ligada aos alemães. Não se sabia porque a Winthrop ignorara o composto naquela circunstância. Havia a possibilidade de quebrar a licença, mas, no ambiente do capitalismo norte-americano, seria um passo muito radical, que assinalaria intervenção excessiva do Estado nos direitos das corporações. Eles tiveram, então, a ideia de operar modificações na estrutura da sontoquina em um consórcio do Estado com as principais indústrias químicas norte-americanas.
Os análogos foram testados em hospitais psiquiátricos e em um hospital da marinha. A sontoquina permanecia à frente em termos de eficiência e menor toxicidade; os derivados apresentavam efeitos como visão duplicada, irritabilidade e coceira excessiva. Em estudantes, provocaram diarreia, cefaleia, depressão e perda de apetite. Os norte-americanos chegaram ao análogo SN-7618, que mostrou bons resultados e poderia ser produzido livre das licenças da Winthrop, apesar de corresponder estruturalmente à resochina, sintetizada por Andersag em 1934. Realizaram testes no presídio de Stateville, que havia se convertido em um centro de experimentação dos novos compostos e viram que se tratava do medicamento que tanto haviam procurado.
Como ela surgiu como cloroquina
Em maio de 1945, os pesquisadores norte-americanos realizaram um grande experimento em população numerosa de pessoas naturalmente infectadas, em presídios, na Austrália e em uma fazenda inglesa no Peru. Comparada com as fórmulas anteriores, a droga, rebatizada de cloroquina (mas que correspondia à resochina) apresentava toxicidade baixa, poucos efeitos colaterais e eficiente ação antiparasitária, com diminuição célere dos sintomas da malária. Em 1946, ela tornou-se disponível para a população civil, mesmo ano em que foi desenvolvida a hidroxicloroquina, uma versão ligeiramente modificada da cloroquina. Assim, a cloroquina e a hidroxicloroquina resultaram de uma série de modificações em uma família de moléculas, das quais também surgiram os primeiros antimaláricos sintéticos, em uma trajetória bastante controvertida, que envolveu químicos, biólogos, psiquiatras, burocratas e militares, além de pacientes, que foram submetidos a experimentos em condições bastante questionáveis do ponto de vista ético. A finalidade foi substituir a quinina de maneira a diversificar o repertório de tratamentos contra a malária, que apesar de ser um problema sanitário milenar, ainda representa enorme desafio para a saúde global.
Cloroquina em perspectiva histórica
Assembleia promovida pela Frente Alemã para o Trabalho na fábrica da Bayer, em Leverkusen, em 1936. PINNOW, Hermann. I.G. Farbenindustrie AG. Werksgeschichte – Bayer, 1863 – 1938. München: Bruckmann, 1938. p.183.
Nas décadas seguintes, a cloroquina tornou-se uma das drogas mais utilizadas no mundo, ocupando a terceira posição até a década de 1990 e passando a ser empregada no tratamento de outras doenças. Sua eficácia, junto com o DDT, inseticida de ação residual que mostrou-se altamente eficiente no combate aos mosquitos vetores e pragas agrícolas, apesar das consequências ambientais catastróficas, foi basilar para a campanha de erradicação da malária, lançada em 1955. Apesar do otimismo expressado na finalidade da campanha, esta não foi atingida, entre outras razões porque, pouco depois da mesma ser lançada, começaram a surgir relatos de resistência dos parasitas da malária à cloroquina. Tais relatos ganharam vulto nos anos 1960, mas a cloroquina permaneceu uma opção terapêutica, passando a compor esquemas de tratamento que a combinavam com outras drogas que surgiram desde então.
De novo em cena
É recorrente na história das epidemias a busca por meios eficazes de tratamento e cura. Nesse contexto, médicos e cientistas são geralmente bastante cobrados a apresentarem ou a desenvolverem drogas ou vacinas capazes de eliminar o “agente infeccioso”, ao mesmo tempo em que se buscam meios de aliviar os sintomas com as medicinas de costume.
A pressa no desenvolvimento de medicamentos ou tratamentos é compreensível, afinal de contas, as vidas de milhões de pessoas estão em risco. Por outro lado, a ansiedade pode ser uma péssima conselheira. A ciência tem prazos quase sempre longos, sobretudo quando estamos falando do desenvolvimento de vacinas. Pular ou acelerar essas etapas pode resultar não só em riscos para a saúde como em violações éticas graves.
Expressão disso foi a recente sugestão do chefe da Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Cochin, de Paris, o francês Jean Paul Mira, durante conversa transmitida ao vivo pelo canal francês LCI. No dia primeiro de abril, Mira, em debate com Camille Locht, diretor do Instituto de Saúde e Pesquisas Médicas da França (INSERM), Mira sugeriu testes de vacina contra a COVID-19 no continente africano. A proposta é reflexo da permanência do legado colonial no imaginário europeu e, mais especificamente, reminiscências de períodos históricos em que África e em outras regiões foram zonas livres de experimentações médicas em indivíduos, tidos pelo racismo e racialismo vigentes, como “sub-humanos” degenerados. Em função dessa leitura racialista, os povos africanos poderiam ser alvos de testes, sem levar em conta os riscos e danos aos quais estavam expostos. Os testes estariam justificados pela suposta condição “sub-humana” das populações e pelo bem do progresso médico-científico. Esta é mais uma faceta sombria do colonialismo europeu – a participação da medicina nas atrocidades perpetradas nas regiões coloniais –, a qual tem sido objeto de estudo de historiadores interessados em compreender o lugar das ciências nas engrenagens do imperialismo e como este consórcio impactou a atividade médica e científica nas metrópoles. Em seis de abril, o diretor-geral da Organização Mundial de Saúde, Tedros Adhanom Ghebreyesus, condenou “o legado de uma mentalidade colonial” na fala do médico francês, advertindo que o continente africano não seria campo de testes para nenhuma vacina.
A pandemia do novo coronavírus já infectou mais de 5 milhões no mundo e matou 300 mil pessoas. A falta de quimioterápicos promissores acentua a esperança no desenvolvimento de uma vacina. Contudo, é preciso estar atento às transgressões éticas que podem ser despertados pela busca apressadas e politizada de medicamentos. Os abusos ocorridos durante a Segunda Guerra em experimentações com humanos, principalmente na Alemanha nazista, legaram traumas, mas também um código de ética que transformou de forma significativa a prática médica desde então. Que a descoberta dos novos terapêuticos contra a pandemia obedeçam a tais critérios éticos e que os nostálgicos de tempos sombrios não encontrem voz em uma crise que pede uma ciência mais humana, solidária e cidadã.
Referências Bibliográficas
SLATER, Leo. War and Disease: Biomedical Research on Malaria in the Twentieth Century. Piscataway, NJ: Rutgers University Press, 2009.
WULF, Stefan. Das Hamburger Tropeninstitut, 1919 bis 1945: auswärtige Kulturpolitik und Kolonialrevisionismus nach Versailles. Berlin/ Hamburg: Dietrich Reimer, 1994.